EM PIRACICABA (SP) 06 DE JUNHO DE 2025

Entronização de Cristo no plenário marca retorno da Câmara pós-Estado Novo

Destaque da série Achados do Arquivo, fato ocorrido em 1948 suscitou a discussão sobre diferenças do significado de imagens religiosas




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Entronização da imagem do Cristo Crucificado aconteceu em 25 de janeiro de 1948




Após o período em que Getúlio Vargas ocupou a Presidência da República, entre a Revolução de 1930 até o fim do Estado Novo, em 1945, o Brasil voltou a um período democrático. Com essa abertura política, as câmaras municipais, que estavam fechadas desde 1937, voltaram a funcionar, sendo reinstaladas, uma a uma, Brasil afora.

Ao terem novamente as portas abertas, seus ocupantes, após tirar a poeira e dar uma nova pintura, resolviam que era hora de dar prosseguimento a uma antiga tradição, trazida pelos portugueses e que vigorava desde o período colonial: a entronização e afixação da imagem do Cristo Crucificado nas dependências das câmaras.

A entronização da imagem do Cristo Crucificado é o destaque desta semana da série ‘Achados do Arquivo’, produzido a partir de uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba.

Na Câmara de Piracicaba, ainda sem a imagem de Cristo, foi aberta a Primeira Sessão Ordinária de 1948, em 2 de janeiro. Nela, o vereador João Batista Vizioli apresentou a Indicação nº 1, solicitando a “entronização da Imagem do Cristo Crucificado” na Sala das Sessões, em “sessão solene e extraordinária”. O texto da proposta era o seguinte:

 “Considerando que a população piracicabana é, na grande maioria, constituída de católicos apostólicos romanos;
Considerando que devemos implorar as bênçãos de Deus para que não esmoreçamos nos nossos trabalhos;
Considerando que a imagem de Cristo Crucificado será para nós o guia e protetor para o rumo certo,
Indico que a Mesa, após a aprovação, se digne providenciar:
a) Seja entronizada, na Sala das Sessões da Câmara Municipal, a Imagem de Jesus Crucificado;
b) Que o ato se revista de solenidade e seja realizado em sessão extraordinária”.

Após a apresentação da indicação pelo autor, o vereador João Basílio “se confessou católico e ponderou que, pessoalmente, aprovava a indicação, observando, entretanto, que, reconhecida a liberdade de cultos, algum dos colegas deveria manifestar-se a respeito”.

Logo em seguida, a indicação foi posta em votação simbólica pelo presidente, tendo sido “aprovada por unanimidade, dependendo de sessão solene e extraordinária a ser designada, com o comparecimento das autoridades civis e eclesiásticas”.

A aprovação da indicação foi imediata, no entanto, até a realização da solenidade de entronização, haveria alguns ruídos divergentes, vindos da população e de dentro da própria Câmara.

Seis dias depois, em 8 de janeiro, ao ler o Jornal de Piracicaba, o vereador João Vizioli se deparou com um artigo, escrito pelo cidadão Isidro Rocha e publicado numa coluna chamada “Secção Livre”, que expunha seu crítico ponto de vista a respeito da proposta:

“Os meus distintos conterrâneos vereadores, talvez bem-intencionados, mas por faltar-lhes a luz dos Evangelhos, confundiram-se e permitiram que aquilo se fizesse.
De fato, para a salvação dos homens, do Brasil e do mundo, Cristo deve ser entronizado, mas não um Cristo metálico, férreo ou térreo, mas aquele que ressuscitou e assim mesmo individualmente nos corações dos homens para que estes O sigam, pautando suas ações no seu exemplo e ensinos contidos nos Evangelhos.
É grande a diferença entre quem displicentemente aprova a entronização da imagem, daquele que por nós morreu (...).
É muito fácil (até logico), perante uma imagem, alguém dizer-se cristão, mas não ter Cristo Vivo, ressurreto em seu coração. (...)
Não tenciono, em absoluto, iniciar aqui uma polêmica, pois não é este o meu alvo. Mas única e simplesmente manifestar de público meu mais solene protesto pelo sucedido e também convidar os meus queridos e respeitáveis conterrâneos a entronizar, individualmente, pela fé, conforme determinam os Evangelhos, Cristo nos seus corações.”

Dois dias depois, em 10 de janeiro, na Segunda Sessão Ordinária, o vereador João Vizioli usou a palavra para se manifestar “contra uma capciosa ‘Sessão Livre’, inserta na imprensa local, em protesto pela entronização da Imagem do Crucificado no recinto desta Câmara”. Em sua fala, ainda sugeriu “a data de 25 de janeiro, dia em que se comemora a conversão do apóstolo São Paulo, para a entronização”. 

Além de fazer uso da palavra em sessão, o vereador Vizioli encaminhou um ofício ao presidente da Câmara e aos demais vereadores expondo o seu ponto de vista a respeito do texto do sr. Isidro:

“Não conhecemos o ilustre signatário do referido protesto, mas, a ser verdadeiro o que escreveu naquela publicação, merece ele todo o nosso respeito. Terá ele atingido um alto grau de perfeição religiosa porque conserva Cristo no recesso mais íntimo do seu coração, dispensando por isso qualquer imagem que o faz lembrado. Quisera que todos os cristãos assim fossem, mas com sinceridade.
Confesso que, em meu escritório de trabalhos, em minha residência, conservo a imagem de Jesus Crucificado e, cada vez que, com o olhar a ele me dirijo, suplico-lhe mentalmente que perdoe aos nossos inimigos, que me inspire sempre na prática do bem e da caridade.
Se, entre os nobres colegas vereadores, existe alguém que, no dizer do autor daquela publicação, ‘aqui aprova a entronização e lá fora pratica o câmbio negro, a orgia e coisas condenadas pelos Evangelhos’, responderemos que nem todos, infelizmente, tiveram ainda a suprema felicidade em alcançar a desejada perfeição religiosa”.

Doze dias depois, na Quarta Sessão Ordinária, realizada no dia 22 de janeiro, um intenso debate aconteceu a respeito do tema.

O primeiro a tratar do assunto foi o vereador Domingos José Aldrovandi. Aldrovandi, que não era católico, se declarou avesso à proposta, sendo “o seu ponto de vista da Igreja Evangélica, contrário à entronização da Imagem do Crucificado no recinto das sessões da Câmara, qualificando-a de infeliz e inconstitucional”.

Católico fervoroso, o vereador Guilherme Vitti aparteou “vivamente” Aldrovandi. Citando passagens bíblicas, Vitti defendeu “que o feitio de imagens não era absolutamente contrário ao mandamento divino, citando, entre outros fatos, o da serpente de bronze feita por Moisés a mandado de Deus, e o dos anjos na Arca da Aliança, mas sim o que se proíbe é a adoração das imagens, do que nunca cogitou a Igreja Católica Apostólica Romana, e que há diferença essencial entre venerar e adorar”.

Em resposta a Vitti, Aldrovandi disse “não concordar com tal diferença, apoiando-se em autoridades filológicas do país”.

O autor da proposta, vereador João Batista Vizioli, também aparteou o orador, ao dizer que “o próprio Cristo não era contrário ao feitio de imagens, imprimindo a de seu sagrado rosto no véu que lhe apresentara a Verônica. Esclareceu ainda que a Igreja Católica não adorava as imagens como pretendia o orador, mas apenas lhes presta o culto de veneração em caráter meramente subjetivo e não objetivo”.

Aldrovandi retomou a palavra para continuar sua explanação, mas começou a receber contínuos apartes, ao que o vereador Acary de Oliveira Mendes interveio para dizer que “se estava perdendo tempo em discussões estéreis, pelo que a Casa deveria limitar-se a ouvir simplesmente o orador, sem interrompê-lo, evitando assim discussões religiosas, visto que em matéria de religião julgava ele impossível chegar a um acordo entre as partes”.

Temeroso de que a discussão tomasse proporções bíblicas e um ambiente nada cristão se instalasse, o presidente resolveu encerrá-la, fazendo ver a todos os vereadores que a proposta de “entronização da Imagem de Cristo Crucificado fora aprovada por unanimidade e que o orador já expendera seu ponto de vista”.

Três dias depois, no final da tarde do domingo, 25 de janeiro, uma procissão percorreu as ruas centrais de Piracicaba, tendo como destino a Câmara Municipal.

Lá chegando, teve início a sessão extraordinária destinada exclusivamente à “Entronização da Imagem de Jesus Crucificado” no recinto da Câmara. Presentes à solenidade estavam D. Ernesto de Paula, bispo diocesano; Luiz Dias Gonzaga, prefeito municipal; monsenhor Manoel Francisco Rosa, vigário forâneo; padre Aléssio Adani, chanceler do bispado; Mário Calmon Gois de Brito, delegado regional; professor Lamartine Coimbra, diretor da Escola Normal “Sud Mennucci”; professor Antonio Zanin, diretor da Escola de Comércio “Cristóvão Colombo”; além de vereadores, outras autoridades civis e religiosas, bem como de grande massa popular.

Logo no começo da solenidade a imagem foi colocada, pelas mãos do vereador Benedito Glicério Teixeira, “atrás e sobre a mesa da Presidência da Câmara”, tendo recebido o ato uma “prolongada salva de palmas”.

A primeira autoridade a discursar foi o presidente da Câmara, vereador Aldrovando Fleury Pires Correa, que, falando em nome da Casa, “teceu um breve comentário histórico referente à data comemorativa do dia, a da fundação da cidade de São Paulo”. Em seguida, referiu-se “aos primórdios da fundação de Piracicaba, dizendo que, também ela como São Paulo, nasceu e cresceu sob a égide do catolicismo, com uma capela e a casa do vigário, à margem direita do Piracicaba, no terreno da chácara da Baronesa de Rezende, e como, através dos tempos, as câmaras municipais, tribunais de júri e assembleias recebiam sempre o bafejo da religião, hoje, também, ao entronizar a imagem de Cristo, na Sala das Sessões desta Câmara, se colocava sob a assistência do divino legislador”.  

O segundo a se pronunciar foi o vereador Érico da Rocha Nobre, que “produziu uma belíssima prece a Cristo Crucificado”.

De acordo com a ata, o terceiro orador inscrito, vereador João Batista Vizioli, não compareceu. O que soa estranho, já que ele era o autor da proposta do ato que se realizava. Em sua ausência, o presidente concedeu a palavra ao vereador Luiz Coury, que a havia pedido. O orador fez “referências à situação atual do mundo, cheio de angústias e misérias, provenientes da falta de fé entre os homens e o esquecimento de Deus”.

O último discurso ficou a cargo do bispo diocesano, Dom Ernesto de Paula, “manifestando-se satisfeito diante do espetáculo que presenciava e congratulando-se com os srs. vereadores por aquela solenidade. Apresentando-lhes Cristo como o caminho, a verdade e a vida, concitava-os a de deixarem guiar pelos seus divinos ensinamentos, procurando ser sempre verdadeiros no cumprimento de seus deveres. Relembrou as palavras do Padre Eterno proferidas na cena do batismo de Jesus – ‘Ouvi-o’, disse Deus aos que presenciavam o ato. Assim também, aconselhava aos srs. vereadores a ouvirem a voz de Cristo, nos seus momentos de lutas e dificuldades. Encerrou sua oração implorando as bênçãos de Deus sobre a Câmara e seus membros”.

Na sequência, o presidente franqueou a palavra a quem quisesse fazer uso. Como ninguém se apresentou, agradeceu a presença de todos e convidou-os para se dirigirem ao gabinete do prefeito, a fim de assistirem à entronização da Imagem de Nossa Senhora Aparecida naquele recinto, declarando, em seguida, encerrada a sessão.  

Desde aquele longínquo janeiro de 1948, a Imagem de Jesus Crucificado permanece no plenário da Câmara. Sua presença, mesmo que discreta e muitas vezes não notada, se traduz como a materialização do eco permanente das palavras do bispo Dom Ernesto: “Ouçam-Me”.

ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba, com o objetivo de divulgar o acervo que está sob a guarda do Legislativo. As matérias são publicadas às sextas-feiras.

Achados do Arquivo Documentação Institucional

Texto:  Bruno de Oliveira
Supervisão de Texto e Fotografia: Rodrigo Alves - MTB 42.583
Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Pesquisa:  Bruno de Oliveira


Anexos:
ata - sessão extr. - entronização da imagem de jesus.pdf

atas - sessões ordinárias - janeiro 1948.pdf

indicação nº 1 de 1948.pdf


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