EM PIRACICABA (SP) 30 DE MAIO DE 2023

Geografia, cultura e violência: a Escravidão nos arquivos da Câmara

Documentos do Legislativo revelam aspectos do sistema escravagista na cidade; roda de conversa sobre o tema tem inscrições até domingo, 4




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Câmara seguia ordens da Província de São Paulo na fuga de escravizados

Crédito: Arquivo Histórico da Câmara


A escravidão no Brasil durou 388 anos e foi abolida há 135 anos, com a assinatura da Lei Áurea no dia 13 de maio de 1888. Em seus primeiros anos, Piracicaba – então, chamada de Vila da Constituição – também adotou o trabalho escravo como principal mão de obra para o desenvolvimento da economia, assim como as demais províncias do país.

Atas do Legislativo, correspondências e ofícios preservados e transcritos pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba revelam a geografia, a cultura e a violência da Escravidão no território onde hoje se encontra a cidade dos tempos modernos. São relatos de como o sistema escravagista impactou a população daquela época e que ainda mantém seus traços no dia a dia da cidade.

Todo esse acervo será detalhado na roda de conversa “Rotas Afro nos arquivos da Câmara Municipal de Piracicaba, que a Escola do Legislativo “Antonio Carlos Danelon – Totó Danelon” realiza no próximo dia 6, das 14h às 16h, na Igreja São Benedito, com inscrições que seguem até o dia 4.

Presença negra - De acordo com o professor e historiador piracicabano Noedi Monteiro, a presença do negro em Piracicaba é anterior à própria povoação oficial, em 1767. “Há registros, em documentos oficiais da então Capitania de São Paulo, que dão conta da existência de escravizados aqui já em 1733 e mesmo antes disso”, diz o professor.

Ele ainda destaca que "a finta de 400 réis” aqui estabelecida para financiar as obras públicas “foi mais do que suficiente para bancar as construções”, pois, em 1822, mais da metade da população piracicabana era composta de escravizados. Das cerca de 2200 pessoas morando na Vila, 1108 eram escravizados, informou Noedi Monteiro.

Posse de escravizados e tributo – Em 10 de agosto de 1822, Piracicaba deixa de ser Freguesia e torna-se Vila. Mais do que uma mudança de nomenclatura, na prática, o novo título significou o início da conquista da autonomia administrativa da futura cidade.

Para que o poder local pudesse ser de fato exercido, além de designar pessoas para os cargos da administração, também se fazia necessária a construção dos espaços públicos reservados para as decisões e para a vida comunitária da então chamada Vila Nova da Constituição, como por exemplo a Casa de Câmara, a cadeia, o “Concelho” e as “cazinhas”, espécie de mercado público da época.

Estabelecida em 1822, a “finta” determinava que os proprietários pagassem o tributo de 400 réis por escravo (considerado como propriedade) para viabilizar financeiramente a construção de obras públicas. A finta foi o primeiro tributo estipulado pela municipalidade quando da conquista de sua autonomia e aparece numa Ata de Vereança de 12 de agosto de 1822: “uma finta de quatrocentos réis por cabeça de cada escravo deste Distrito”.

Fuga de escravizados – Documentos em posse e sob a guarda da Câmara demonstram como a então Vila da Constituição, em 1881, se comportava perante as autoridades constituídas. Circular do Governo da Província de São Paulo, de 10 de maio, na qual consta cópia do decreto 8.061/1881, determinava como deveriam ser feitas e averbadas as declarações de fugas e apreensões de escravizados, que também eram impedidos de recorrer ao Fundo de Emancipação. Caberia multa aos proprietários ou administradores que não comunicassem a fuga que tivessem sob seu domínio.

Revoltas - A Piracicaba do século XIX era um dos municípios com maior número de escravizados da região. Os fazendeiros escravocratas da região tinham de lidar com as constantes revoltas, motivadas pelo desejo dos escravizados de fugir da realidade em que viviam. No acervo da Câmara Municipal, encontra-se um ofício remetido ao presidente da Província de São Paulo pela Câmara de Piracicaba, datado de 7 de abril de 1858, no qual os senhores demonstravam preocupação com escravizados em estado de revolta e solicitavam armas para a Guarda Nacional, a fim de conter motins.

A razão da inquietação dos fazendeiros era a constante ameaça de revoltas de escravizados, como a recém ocorrida no engenho de açúcar de Torquato da Silva Leitão. Segundo o documento, o homem possivelmente foi ferido por escravizados que se rebelaram, porém, encontrado com vida em uma estrada do engenho. O ofício afirma que a escravatura achava-se "quase em revolta" e que já havia "alguma desordem" em algumas propriedades.

Pelourinho em Piracicaba - O pelourinho representava o “sinal de respeito e justiça”. Localizava-se na praça José Bonifácio, próximo à fonte e ao coreto, que existiam na época, onde mais tarde seria instalado o Teatro Santo Estevão. Segundo Guilherme Vitti, no “Manual de História Piracicabana”, o pelourinho foi o símbolo da autoridade civil e sinal de independência administrativa. No seu entorno ficavam a Casa da Câmara e a Cadeia, além da Matriz, igreja de Santo Antônio.

Registros do nascimento de Piracicaba, em 1816, demonstram que o pelourinho ficava no centro da praça principal. Não se conhece o paradeiro deste instrumento, que ainda no século 19 estava preparado, lavrado e oitavado, constituído de madeira de cabreúva grossa e composto com quatro braços de ferro, com argolões nas quatro faces, tendo em cima do capitel uma haste de ferro, sustentando um braço com um cutelo e uma bandeirinha no cimo.

O pelourinho representava um dos instrumentos de suplício dos escravizados e marca de grandeza das cidades. Diversas localidades brasileiras, a exemplo de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, e Mariana, em Minas Gerais, ainda hoje conservam parte destes equipamentos, instalados em praças públicas.

Correspondências - O governo Provincial, em 1830, questionou a Câmara de Piracicaba pelos açoites infringidos a um escravo liberto, em praça pública, por ordem judicial. Em documento de 19 de abril, o governo de São Paulo questiona a Câmara sobre ouso indevido do pelourinho, no qual um homem liberto foi castigado e açoitado – o que mostra uma das faces do racismo da era imperial e escravagista. Tal documento é acompanhado pela resposta da Câmara de Piracicaba, direcionada à Província.

Naquela ocasião, o presidente da Câmara e demais vereadores foram questionados pela autoridade provincial a respeito da atitude deste juiz. Consta que pela Folha Pública desta cidade, o juiz de Paz dessa Vila, de forma violenta, arbitrária e cruelmente, fizera castigar em público, com açoites, um homem que há 10 anos residia na mesma Vila, como liberto, e que foi obrigado a confessar se era ou não escravizado de um outro homem, que como tal o reclamava, apesar de afirmar ter alguma dúvida a respeito dos sinais pelos quais o reputava ser o seu escravizado.

Tomando ciência do caso, o governador da Província ordenou que imediatamente fosse verificado com legalidade a verdade do fato apontado, para que se pudesse mandar proceder conforme as leis contra aquele juiz, que as teria violado, faltando ao mesmo tempo aos deveres de humanidade. “Deus guarde a Vossa Mercê. Palácio do Governo de São Paulo, 19 de abril de 1830, Manoel Bispo, aos senhores presidente e membros da Câmara da Vila da Constituição”, destaca o documento oficial.

Resposta - Os vereadores da época se manifestaram sobre o ocorrido: “Satisfazendo ofício de Vossa Excelência, dirigido a esta Câmara, em data de 19 de abril, em que ordena imediatamente e com legalidade, informe sobre ter o juiz de Paz desta Vila com violenta arbitrariedade feito castigar com açoites a um homem que há 10 anos residia como liberto, para obrigar a confessar se era ou não escravo de um outro, que como tal o reclamava, sendo que sobre isso informamos, com a veracidade do que está ao nosso alcance".

"Também se reconhece que o sujeito que se faz menção de nome Francisco, há mais de oito anos, sempre residiu nesta Vila, tido e havido por liberto, e aparecendo nesta um outro sujeito se dizendo ser seu o escravo, apresentando ao juiz de Paz para averiguar se era ou não cativo, em cujo ato constava dúvida ser o seu cativo, por alguns sinais."

"E, por parte do juiz foi o dito Francisco dizendo ser o escravo, e apresentou aos juízes de Paz para averiguarem se era ou não cativo, em cujo ato constava dúvidas ser o cativo, por alguns sinais, e da Casa daquela autoridade foi decidido que o tal de Francisco fosse conduzido ao Pelourinho, onde sofreu alguns açoites com o pretexto de confessar se era ou não cativo, como se primeiro vulgarizou."

"Porém, agora, por algumas informações a que se teve acesso, consta que o dito Francisco confessava ser cativo, porém, não daquele sujeito e isto antes de ir a castigo, pelo que nos convencemos, que a mente do juiz de Paz não foi castigar ao homem livre. Esta é a verdade que podemos afirmar."

“Deus guarde a Vossa Excelência. Constituição, 10 de maio 1830, ilustríssimo excelentíssimo Senhor Presidente da Província de São Paulo, Pedro Leme de Oliveira, Antonio Fiuza de Almeida, José Alves de Castro, Carlos José Botelho e Joaquim Antonio da Silva. Esta, conforme Francisco Florêncio do Amaral – secretário da Câmara", concluíram os vereadores, em resposta ao governo da Província.

Castigos – Duzentos açoites no pelourinho: essa era a pena para os escravizados – também chamados de cativos – que fossem encontrados com arma de fogo, faca, azagaia, espada ou porrete. A punição foi definida na sessão ordinária de 20 de julho de 1831, cuja ata integra o Quarto Livro de Atas da Câmara Municipal de Piracicaba.

Na ocasião, uma comissão permanente apresentou como proposta nove artigos de um Código de Posturas que regeria a relação entre escravizados e armas, determinando duras e violentas punições para os privados de liberdade. Além da pena citada por portar diferentes tipos de armas, o artigo 2º determinava que aqueles que vendessem pólvora, chumbo ou “armas ofensivas” a escravizados, pessoas suspeitas e desconhecidos seriam presos por oito dias e teriam de pagar multa de 20 mil réis.

Já o artigo 4º propunha que os ferreiros não deveriam construir ou consertar armas para os mesmos indivíduos – “escravos, pessoas suspeitas ou desconhecidas”. Se o contraventor fosse livre, a pena seria, também, de oito dias de cadeia e 20 mil réis de multa. No entanto, caso o ferreiro fosse “cativo”, a pena seria de 4 dias na cadeia, levando 50 açoites por dia.

O código estabelecia, ainda, que os escravizados não poderiam andar “de matula” pelas ruas, ou seja, reunidos em trios ou grupos com mais pessoas. Quando isso acontecesse, eles deveriam ser dispersados; caso houvesse resistência, seriam presos e levariam a mesma pena de 200 chibatadas.

Outro artigo do código, o 8º, definia que qualquer escravo que “por atos ou palavras” desse indício de insurreição ou levante também seria punido no pelourinho com as agressões. O texto da ata indica também que o proprietário do escravizado que sugerisse revolta seria “intimado para trazer com ferros por seis meses”, o que pode fazer referência aos ferros aplicados aos pescoços ou aos grilhões nos tornozelos, frequentemente usados como punição àqueles que fugiam.

Na ata, relata-se que três artigos foram suprimidos: um deles versava sobre a necessidade de licença prévia do Juiz de Paz para vender armas, pólvora e chumbo; outro definia que escravizados não poderiam trabalhar em oficinas de ferreiros; o terceiro determinava que toda pessoa desconhecida que a parecesse sem passaporte no município seria presa. Outros dois artigos receberam emendas que corrigiam a punição, alterando a quantidade de dias na prisão ou de chibatadas a serem recebidas; os demais foram aceitos como propostos inicialmente.

Punição com forca – Prática comum no Brasil Império, período da história entre os anos de 1822 e 1889, os escravizados condenados com pena de morte eram executados com o uso da forca, conforme previsto no Código Criminal. Em Piracicaba, o emprego dessa punição foi discutido na Câmara Municipal em 1843. É o que consta no Livro de Atas nº 6, que integra o acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara.

A versão original da ata está preservada no acervo da Câmara e pode ser acessada na versão em PDF no site oficial. Ela data de 19 de junho de 1843, quando ocorreu a sua leitura pela Casa Legislativa. A construção foi solicitada objetivando a execução e uma sentença de morte contra o escravizado do comendador João Manoel da Silva.

O mesmo assunto retornou à pauta em 23 de junho daquele ano. Desta vez, a questão era o local para instalação da forca. A Câmara deliberou que poderia ser adiante da ponte do rio Itapeva, à direita, ao lado da rua Santa Cruz. O fiscal da época ficou encarregado de limpar todo o terreno e preparar a feitura da forca. Há, ainda, a menção de que deveria ser feito “com toda a brevidade para a solenidade do ato...”

Em 4 de agosto de 1843, o vereador Domingos José Lopes Roiz indica que o fiscal deveria gramar o Pátio da Forca, com grama larga, e que a escada ––possivelmente de madeira, e removível–– deveria ser guardada na cadeia para não apodrecer.

A forca localizava-se entre as ruas Moraes Barros e XV de Novembro, possivelmente em cruzamento com a rua Santa Cruz. Embora a existência do dispositivo de tortura seja atestada de forma documental, não há material que informe se sua utilização ocorreu e não é possível saber se houve a aplicação da sentença (no caso, a execução do escravizado), já que não há nada mencionando a questão nas anotações das sessões seguintes da Câmara.

Ventre Livre – A lei 2040, promulgada em 28 de setembro de 1871, conhecida como "Lei do Ventre Livre", determinou que os filhos que nascessem de mulheres escravizadas a partir daquela data estariam livres. Os senhores deveriam cuidar deles até os oito anos; depois, os donos das terras poderiam optar por receber indenização de 600 mil réis do Estado ou utilizar-se do serviço dos menores até que completassem 21 anos.

Além disso, a lei criava o Fundo de Emancipação, que previa a destinação de recursos pecuniários para as províncias do país, a fim de que os valores comprassem a alforria de quantos escravizados fosse possível. Os recursos seriam obtidos através da taxa paga pelos senhores por cada escravizado, de impostos cobrados sobre a transferência de propriedade dos escravizados, das multas provenientes da própria lei, entre outros.

A ata da sessão camarária da Câmara Municipal de Piracicaba de 2 de novembro de 1871 narra que os vereadores piracicabanos receberam duas circulares da presidência da província de São Paulo acerca do tema.

A primeira delas solicitava que o município informasse sobre a existência ou não de moradores dispostos e recursos necessários para a constituição das associações. Segundo a ata, foi decidido que seria oficiado à província que, no momento, os vereadores julgavam impossível essa articulação, conforme relatado no trecho a seguir:

“(...) a Câmara resolveu que se oficiasse à Presidência da Província informando que julga impossível a organização de tais associações no município, ao menos por agora, mas que, entretanto, empregará os meios a seu alcance para conseguir-se esse fim, ficando a seu cuidado comunicar qualquer resultado” (em transcrição livre)

A segunda circular lida pelos parlamentares determinava que a cidade deveria dar publicidade à sanção da nova normativa. Os vereadores deliberaram, na reunião, que uma cópia da lei seria feita e afixada à parede da Igreja Matriz, hoje denominada Catedral de Santo Antônio, localizada na Praça José Bonifácio – local de grande circulação de pessoas à época.

Racismo Estrutural – Em correspondência à Câmara em 21 de julho de 1882, o comerciante Antônio José da Costa Azevedo, que era proprietário de armazém na rua Direita, próximo à ponte do Itapeva, protestava contra algazarras imorais, junto a um chafariz, nas proximidades de seu estabelecimento. O pedido era para mais iluminação onde "escravos e outras pessoas de baixa qualidade promoviam algazarras em público”.

As aglomerações se verificavam ao longo do ribeirão Itapeva, atualmente canalizado, sob a avenida Armando de Salles Oliveira, região central da cidade, especialmente no entroncamento com a rua Moraes Barros, que na época era denominada de rua Direita.

Lei Áurea – Após a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1988, Piracicaba também viu refletir em sua comunidade a conjuntura daquele período, que emanava para todo o país, o último do Continente Americano a não mais permitir, pelo menos na letra da lei, a escravidão de seres humanos. Se por um lado, havia setores locais contrários à Lei Áurea; por outro, houve muita celebração.

Já ciente da aprovação, em 10 de maio, do projeto da Lei da Áurea pela Câmara dos Deputados e, aguardando a votação que ocorreria no Senado, um dia antes da assinatura pela Princesa Isabel – em 12 de maio de 1888 –, a sessão ordinária da Câmara Municipal registrava que o então vereador – em breve, presidente da República – Prudente de Moraes indicava:

“Que esta Câmara associe-se aos festejos e manifestações populares que devem realizar-se nesta cidade por ocasião de chegar a notícia da aprovação definitiva do projeto de abolição da escravidão no Brasil, já [concorrendo incorporada] a esses festejos, e já iluminando o edifício da Câmara e convidando os vereadores da cidade a iluminar as frentes de suas casas”.(em transcrição livre)

Aprovada por unanimidade, a proposta teve o adendo para que “se fizesse distribuir boletim convidando o povo a iluminar a frente de suas casas”.

Nos dias posteriores a este fato, quem passasse pela Rua Santo Antônio esquina coma Rua das Flores (atual Rua Treze de Maio), possivelmente avistaria o vereador Prudente de Moraes tomando os devidos cuidados para que sua casa se mantivesse iluminada.

SERVIÇO – As inscrições para a roda de conversa “Rotas Afro nos arquivos da Câmara Municipal de Piracicaba” seguem até domingo, 4, por meio deste link. Realizado em parceria com a Escola do Legislativo, o evento é gratuito.

Escola do Legislativo Achados do Arquivo Documentação

Texto:  Daniela Teixeira - MTB 61.891
Supervisão:  Rebeca Paroli Makhoul - MTB 25.992
Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337

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