EM PIRACICABA (SP) 19 DE ABRIL DE 2024

Achados: por quem os sinos dobram? ou... os sinos devem dobrar?

No final do Século 19, Câmara impôs limite aos badalares de sino da Igreja, sob a justificativa de atender o sossego público na cidade




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Fotografia da inauguração do sistema de abastecimento de água em Piracicaba, em 1887, no jardim público da Matriz – ao fundo, a Igreja de Santo Antonio (e a torre com o sino) e a atual praça José Bonifácio. Imagem preservada pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara.

Crédito: Arquivo Histórico da Câmara


“Nunca pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. A frase do poema do inglês John Donne, escrito em 1624, talvez não seja amplamente entendida nos dias atuais, já que, séculos depois, a expressão “dobre do sino” não seja familiar a todos. Então, antes de apresentar o destaque da série Achados do Arquivo desta semana, vale um pequeno preâmbulo explicativo.

Os sinos das Igrejas sempre tiveram um papel na sociedade. O badalar deles é que anunciava os horários, as missas, os eventos, os nascimentos e também as mortes. O dobre de sinos – ou dobre de finados – é o ato de soar os sinos em decorrência do falecimento de alguém. Os sinos comunicam, alertam e avisam, cumprindo assim um papel social, quase ritualístico. Mas o soar dos sinos também, às vezes, incomoda. Pelo menos é o que parece.

No acervo da Câmara Municipal de Piracicaba, em um livro de registro das normativas promulgadas pela edilidade, está descrita a “Lei sobre dobres de sinos”, datada de 7 de dezembro de 1896:

Art.1º - São proibidos dobres de sinos nas Igrejas desta cidade. O infrator ou responsável pela infração será multado em 20#000.

Art.2º - São permitidos os toques de sinal para festividades e cerimonias religiosas, não podendo cada toque durar mais de trinta segundos, nem serem repetidos mais de duas vezes na hora, nem mais de seis vezes no dia(em transcrição livre)

Tem-se aqui um claro embate entre uma tradição social e religiosa com outros princípios que regem o convívio em sociedade, como o sossego público. Mas a iniciativa do Poder Legislativo teve outros desdobramentos – e isso aconteceu já no Século 20. Pelo menos é o que demonstra uma nota datilografada e colocada no final da mesma normativa:

Parecer nº32, de 1905 – O padre José Rodrigues Sechler, vigário de Piracicaba, recorreu da lei de 7 de dezembro de 1896, da Câmara Municipal que proibira os dobre de sino a finados e reduzira ao tempo de trinta segundos apenas os repique dos sinos. Fundamentou o recorrente a provocação nos textos do art. 72 #72 3 e 7 da Constituição da República que permitem o exercício público e livre dos cultos religiosos, e declaram que nenhum culto terá relações de dependência com o governo da União e dos Estados. Não há dúvida de que essas disposições constitucionais asseguram a mais plena liberdade no exercício dos cultos religiosos. Porém não há direito, por mais absoluto que pareça, que não sofre em seu exercício as limitações inerentes à coexistência social e ao interesse comum. Conseguintemente, se pelo uso indevido ou imoderado de atos do culto externo de qualquer profissão religiosa perturbar-se o sossego ou a comodidade publica, o Estado terá o direito de proibir, em proveito geral essas demasias. A Câmara Municipal não teve bastante critério na aplicação deste princípio, pois que em vez de impedir o abuso no tique de sinos, praticando assim um ato concernente à policia e ao bem do município, conforme a faculdade que lhe concede o art. 53 # último da lei de 13 de novembro de 1891, proibiu que os sinos das Igrejas de Piracicaba dobrassem a finados, e reduziu os repiques de sinos ao tempo de trinta segundos, o que foi quase o mesmo que proibi-los. Isto posto, parece à Comissão de Recursos Municipais que a Câmara Municipal de Piracicaba procedeu, no caso ocorrente, sem respeito às citadas disposições da Constituição Federal, pelo que oferece à consideração do Senado a seguinte: - Resolução n.4 de 1905 – Fica sem nenhum efeito o ato da Câmara Municipal de Piracicaba que proibiu nas Igrejas os dobres de sino a finados e reduziu a trinta segundos o tempo dos repiques de sino. Sala das comissão dos Senado, em 16 de agosto de 1905.”

É uma transcrição longa, mas colocada na integra para bem demonstrar os argumentos utilizados pela comissão no parecer, e a dificuldade de se balizar direitos e liberdades. Não foram encontrados nos documentos da Câmara mais registros que deem indícios claros dos próximos capítulos desta história.

Mas algo é notável. A questão não está limitada ao município piracicabano, nem ao século passado. Uma breve pesquisa pelas normativas mostram leis brasileiras que versam sobre o tema, como a Lei Municipal de São Paulo 11.804/1995, que dispõe sobre avaliação da aceitabilidade de ruídos na cidade.

Em uma batalha entre tradição e o sossego, os sinos foram protagonistas. A pergunta deixa de ser “por quem os sinos dobram?” e passa a ser “os sinos devem dobrar?”.

“O sino dobra a finados.
Faz tanta pena a dobrar!
Não é pelos teus pecados
Que estão vivos a saltar”
      (Fernando Pessoas)

Achados do Arquivo Documentação

Supervisão de Texto e Fotografia: Rebeca Paroli Makhoul - MTB 25.992
Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337

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