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Crime e dança: o caso dos italianos Albertin, Bagno e Mazzeo
Processo-crime de 1893, sob a guarda do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara, é destaque da série Achados do Arquivo
Em 29 de janeiro de 1893, no Bairro Alto, em Piracicaba, uma festa não terminou nada bem. É um caso envolvendo desentendimento, uma pedrada, uma facada e três italianos, que gerou processo-crime que tem um número expressivo de versões e divergências.
Este processo-crime faz parte dos documentos doados pela família de Jair Toledo Veiga e esta disponível na integra no Acervo Histórico da Câmara Municipal de Piracicaba. A história dos italianos briguentos é destaque da Série Achados do Arquivo desta semana.
As divergências iniciam-se já nos nomes dos envolvidos, com diferentes grafias encontradas nos documentos que formam o processo. Nos textos originais, não é incomum deparar-se em nomenclaturas díspares. Com a denúncia apresentada pelo promotor público, Cherubim Ferraz de Andrade, tem-se um vislumbre do caso a ser tratado:
“Na tarde de 29 de janeiro do corrente ano, em casa de Domingos Júlio e Domingos Albertin, sita no bairro Alto desta cidade, estavam reunidos diversos italianos, que se divertiam em danças. Luigi Bagno, que também aí se achava, tendo convidado a mulher de Domingos Albertin para dançar, esta recusou-se que a chamou de ‘bestia’. Por esse motivo Domingos Júlio mandou que se retirasse a Luigi Bagno, e este, vendo-se fora da casa jogou uma pedra contra o grupo dos italianos, entre os quais se achava Domingos Albertin e Rafael Mazzeo, e retirou-se. Foi, porém, perseguido por Domingos Albertin e Rafael Mazzeo, que o alcançaram imediatamente. Nesta ocasião, Domingo Albertin segurou e subjugou a Luigi Bagno tendo Rafael Mazzeo dado a facada, que lhe produziu o ferimento constante no auto de corpo de delito” (em transcrição livre)
No auto de corpo de delito, citado pelo promotor, os peritos atestaram que encontraram em Luigi Bagno uma lesão corporal, não mortal, feita com instrumento corto-perfurante, na região da espádua esquerda. Um exame também foi realizado em Rafael Mazzeo, no qual, segundos peritos, uma ofensa física causou lesão corporal, também não mortal, com ligeiro derramamento de sangue, feita com instrumento perfurante, na continuidade na região occipital.
Rafael Mazzeo foi preso em flagrante e no primeiro depoimento apresenta versão pouco diferente daquela que está na denúncia:
“(...) achava-se em casa de Domingos de Tal, seu patrício, dançando, chegando o ofendido e querendo também dançar o respondente e outras companheiros de dança repeliram-no porque o ofendido calçava chinelos portanto indecente para entrar na dança, o ofendido retirou-se e logo depois voltou encontrou o respondente a porta da rua da sua casa deu-lhe uma pancada na cabeça não sabendo dizer com que e vendo que podia ser ofendido puxou por sua faca e agrediu o seu agressor, este pediu-lhe que não o matasse, ao que o respondente atendendo, disso, não lhe mato mas dou um cutucão e assim o fez com a faca que trazia em punho.” (em transcrição livre)
Domingos Albertin prestou seu depoimento em 31 de janeiro de 1893, neste primeiro momento como testemunha. No dia em questão, achava-se em sua casa, quando chegou Luigi Bagno, que “perturbou a ordem” e insultou o acusado, Rafael Mazzeo, e logo em seguida deu uma pedrada no mesmo acusado. Disse também que ouviu dizer por todos que se achavam presentes que Luigi Bagno se achava ofendido com uma facada e que o ofensor tinha sido o acusado presente Rafael Mazzeo e que este já tinha sido preso em flagrante delito.
Um testemunho um tanto quanto diferente do depoente posterior, João Pereira Cardoso, que disse que:
“Domingos Albertin que por seguindo Luigi Bagno alcançou e subjugou-o e nessa ocasião chegou o acusado presente Raphael Mazzeo e ofendeu Luigi Bagno com a faca e para isso puxou Bagno das mãos de Domingos para um lado, não tendo ofendido quando Domingos Albertin subjugava o ofendido” (em transcrição livre)
Paulino Manoel de Oliveira, que supostamente presenciou a briga, também alegou em depoimento, que Rafael Mazzeo deu a facada em Luigi Bagno quando esse se achava preso por Domingo Albertin.
No auto de perguntas ao ofendido, Luigi apresenta uma versão muito parecida com a denúncia, mas acrescenta que recebeu um empurrão e um ponta pé ao ser tirado da casa por Domingos Júlio, que atirou a pedra ao “acaso” e que Albertin o pegou pelo braço e Rafael “meteu-lhe uma facada e fugiu”.
Percebe-se aqui as inúmeras divergências nas narrativas presentes nos depoimentos, e elas só se acentuam nas próximas testemunhas inquiridas ao longo do processo:
José Antônio Maria, inspetor de quarteirão que conduziu Rafael Mazzeo, disse que ouviu dizer que Domingos Albertin segurou a vítima, Luigi Bagno, para Rafael Mazzeo feri-lo. Afirmou também que, no momento da prisão, o réu estava embriagado. Domingos Júlio, um dos donos do local que ocorria a festa, declarou:
“ (...) em dia do mês passado por ocasião de um pequeno divertimento que se realizava em sua casa, ali se achavam o réu presente, Domingos Albertin e Luigi Bagno, entre outras pessoas; que Luigi perturbava o divertimento professando obscenidades pelo que foi advertido por ele depoente e convidado a retirar-se. Que o réu presente também insistiu com Luiz para retirar se e que este enfurecendo se arremessou-lhe uma pedra na cabeça fazendo-lhe sangue; que depois deste incidente ele depoente viu Luigi queixar-se de que estava ofendido com uma facada, não podendo ele depoente dizer, por não ter visto, com que condições Luigi foi ofendido; que as pessoas presentes indicavam o réu como autor da ofensa feita em Luigi, mas que em relação a Domingos Albertin somente ouviu dizer que interveio no conflito para apaziguar e não para segurar a vitima a fim de que o réu a ofendesse” (em transcrição livre)
Augusto Ângelo Nazareth relatou que estava em frente a um armazém na rua Direita, quando viu Luigi Bagno sair vociferando e sendo perseguido por um grupo de italiano, incluindo os acusados, Domingos Albertin e Rafael Mazzeo. Que neste momento Luigi juntou duas pedras e arremessou contra o grupo, sem saber se alguém tinha sido atingido:
“ (...) alcançando foi Luigi seguro pelos acusados Domingos e Rafael, ouvindo logo em seguida, ele depoente, um grito proferido por Luiz, e vendo este cair como se fosse ferido; que então ele depoente e outras pessoas aproximaram-se e verificaram que Luigi estava ferido por uma facada na espadua (...)” (em transcrição livre).
A testemunha também disse que Luigi Bagno era “homem sem ocupação e desordeiro e que depois que se restabeleceu do ferimento já tem provocado desordem e provocando famílias”.
Em meio a tantas divergências sobre os motivos da briga e a participação ou não de Albertin, no dia 12 de abril de 1893 o libelo crime acusatório foi expedido. Nele, o promotor público Cherubim Ferraz de Andrade pede a condenação do réu, Rafael Mazzeo, no grau máximo do artigo 303, por se verificar a circunstância agravante do art. 39§5º; e também a condenação do réu Domingos Albertin no grau máximo do mesmo art. 303, combinado com os art. 21§1º e 54 do Código Penal.
Em 1890, o Código Penal que regia no País definia os crimes e suas punições da seguinte forma:
Art. 303. Ofender fisicamente alguém, produzindo-lhe dor ou alguma lesão no corpo, embora sem derramamento de sangue. Pena: prisão celular por três meses a um ano.
Art. 39. São circunstancias agravantes:
§ 5º Ter o delinquente superioridade em sexo, força ou armas, de modo que o ofendido não pudesse defender-se com probabilidade de repelir a ofensa.
Art. 21. Serão cumplices:
§1º Os que, não tendo resolvido ou provocado de qualquer modo o crime, fornecerem instruções para cometê-lo, e prestarem auxilio à execução.
Art. 54. A pena pode ser cumprida em qualquer estabelecimento especial, ainda que não seja no lugar do domicilio do condenado.
A sessão do júri foi instaurada em 6 de julho de 1893, com ele as respostas dos jurados, que consideram que o réu, Rafael Mazzeo, deferiu sim uma facada que feriu a Luigi Bagno, mas não com superioridade de forças e armas ainda apontaram a circunstância atenuante, a favor do réu, por ter procedido provocação ou agressão da parte do ofendido. Já quanto a Domingos Albertin, por unanimidade de votos, consideraram que ele não segurou o Luigi Bagno a fim de que o réu Rafael Mazzeo o ferisse com uma faca.
“Com as respostas do júri, o juiz de direito, Rafael Marques Coutinho, expediu a sentença, que tem a seguinte redação: em vista das decisões do júri em relação ao réu Rafael Mazzeo, o condeno a três meses de prisão celular, grau mínimo das penas do art. 303 do Código Penal; porém como o mesmo réu está preso preventivamente desde de 31 do mês de janeiro último, isto é, há mais de três meses, e a prisão preventiva conta-se na pena legal, do art.60 do precitado código, mando que em favor do referido réu se passe alvará de soltura, porque hei a pena cumprida. E quanto ao réu Domingos Albertin em vista também das decisões do júri o absolvo da acusação que lhe foi imputada e mando que se lhe de baixa na culpa” (em transcrição livre)
Chega assim o caso dos patrícios italianos, que é envolto em divergências e versões. Mas qual é a verdade? Impossível definir.
ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" se pauta na publicação de documentos do acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo. A iniciativa do Setor de Documentação em parceria com o Departamento de Comunicação Social, com publicações no site da Câmara às sextas-feiras, visa tornar acessíveis ao público as informações do acervo da Casa de Leis.
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