EM PIRACICABA (SP) 28 DE MARÇO DE 2025

Virginio e Leocadia: loucura de amor ou injustiça no Século 19?

Série ‘Achados do Arquivo’ destaca processo de 1881 em que o réu e a vítima são duas pessoas escravizadas




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Processo integra os documentos doados pela família de Jair Toledo Veiga




Monomania é um termo médico do Século 19, que tem como precursor o psiquiatra francês Jean-Étienne Dominique Esquirol. Como o próprio nome já evidencia – mono (única) e mania (obsessão) – refere-se a um estado mental obsessivo (delírio parcial crônico) sobre um limitado número de fatores. O presente texto não pretende explorar o conceito criado por Esquirol, nem suas subcategorias, muito menos suas polêmicas e controvérsias dentro da psiquiatria, apesar de apresentar o termo, pois a chamada “monomania” terá um papel fundamental nos rumos do processo que será apresentado. 

O processo que envolve o caso de Virginio e Locádia integra os documentos doados pela família de Jair Toledo Veiga e está disponível no Acervo Histórico da Câmara Municipal de Piracicaba. Esta matéria integra a série Achados do Arquivo, uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo e o Departamento de Comunicação da Câmara, que resgata e compartilha documentos históricos marcantes da cidade. 

Neste processo tem-se um réu e uma vítima, ambos escravizados, ambos privados de sobrenomes, sendo nomeados como Virginio, “escravo de Francisco Pimenta Gomes”, e Leocadia, “escrava de Dona Anna Joaquina de Aguiar”. Até mesmo nos nomes não há precisão, sendo grafados de maneiras distintas ao longo dos documentos (Virgílio, Virgineo, Leocardia etc). 

Pelos documentos iniciais do processo tem-se que os fatos ocorreram no dia 24 de outubro de 1881, na casa de Francisca Maria Augusta, conhecida como Maria Carnaval, local onde trabalhava Leocadia, como cozinheira “alugada”. Na denúncia, apresentada pelo promotor público da comarca, tem-se um vislumbre dos acontecimentos e de suas motivações.

No dia 24 de outubro próximo passado (1881), às 6 horas da manhã, o réu Virginio, pardo, penetrou nos baixos da casa da rua da Gloria desta cidade, em que mora Francisca Maria Augusta e aí encontrando-se com a preta Leocadia, escrava de Dona Anna Joaquina de Aguiar, deu-lhe oito facadas, como são descritas no respectivo auto de corpo de delito. Dos autos de inquérito consta que o móvel de tal procedimento foi o ciúme do denunciado pela ofendida, senão que haja no denunciado ausência parcial de perfeito e completo uso das faculdades intelectuais(em transcrição livre)

Os depoimentos de Leocadia e das testemunhas, como de Maria Carnaval, trazem mais detalhes, incluindo a versão de Virginio ter deferido uma facada contra si mesmo, na região das costelas. Versão divergente do réu, que alega que tomou um golpe de faca de Leocadia e, depois, desferiu sobre ela as facadas. Não há como saber qual versão é a verdade, se existe de fato uma “versão verdadeira”, mas o corpo de delito, realizado em Virginio, comprova a existência de tal ferimento, já o exame em Leocadia demonstra a gravidade e a extensão de seus ferimentos.

São muitos os documentos que compõem o processo, assentadas, exames, qualificações, depoimentos e inquirições, mas um destaca-se na massa documental. É uma procuração, com o seguinte teor:

Saibam quando esse instrumento virem, que no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1881, aos 4 de novembro, nesta cidade de Piracicaba, em meu cartório, compareceu Francisco Pimenta Gomes, residente nesta cidade, conhecido por mim e das testemunhas no fim assinadas, perante das quais constitui seus bastantes procuradores os doutores Prudente José de Moraes Barros e Manoel de Moraes Barros, e solicitador Candido Borges Martins da Cunha, para qualquer um deles defender o seu escravo Virginio no processo a que vai responder pelos ferimentos praticados na preta Leocadia, escrava de Anna Joaquina de Aguiar, podendo para isso requerer o que convier, assistir a todos os termos e atas do processo no sumario e no plenário, usando de todos os recursos, arrazoando apelação e substabelecendo a presente se necessário for (em transcrição livre)

Personagens muito conhecidos da história piracicabana (e brasileira) participariam da defesa do réu Virgilio, e suas participações são notadas durante o processo. É Prudente de Moraes que solicita um novo exame em Leocadia, para reavaliar a extensão de seus ferimentos. É também ele que apresenta a tese de monomania.

Em um documento, anexado ao processo, o curador Prudente de Moraes Barros, faz as seguintes perguntas aos doutores Joviniano Reginaldo Alvim e Américo Vespúcio Moreira de Almeida:

1º Seria a monomania* amorosa a verdadeira causa desse crime? 2º Virginio está atualmente no gozo perfeito de suas faculdades intelectuais, ou sofre ainda de perturbações provenientes desta monomania?(em transcrição livre)

Segundo o atestado, também apresentado no processo, Virginio havia se tratado na Casa de Saúde de São Francisco, em maio de 1881, sofrendo de “monomania amorosa e suicida”. O fato motivou os questionamentos do curador aos médicos, que apresentaram a seguinte resposta, em 9 de março de 1882:

Ao 1º que sofrendo o pardo Virginio de monomania amorosa e suicida, como observamos durante seu estado na enfermaria, é provável que o móvel do atentado por ele perpetrado fosse o ciúme e despeito, por ter sido repudiado por aquela o quem era dedicado há anos; ao 2º que Virginio atualmente está no gozo de suas faculdades intelectuais, não denotando ter perturbação alguma no dinamismo cerebral, podendo não obstante ser isto um intervalo lucido que provavelmente será interrompido, embora depois de longo empo, por novos ataques(em transcrição livre)

Virginio, réu do processo, enquadrado no libelo crime acusatório no máximo das penas do art. 205 do Código Criminal, por concorrerem com os agravantes do art. 16 §4 e §6, tinha uma tese de defesa para o tribunal e para o júri de sentença. Em 8 de março de 1882 ocorreu o julgamento e o Juiz de Direito, Joaquim de Toledo Pisa e Almeida, em conformidade com a decisão do júri, absolveu Virginio. A decisão não foi uma unanimidade entre os 12 jurados.

O júri, por unanimidade de votos, respondeu que Virginio havia causado os ferimentos em Leocadia, com superioridade de armas. Por 11 votos, o júri considerou que os ferimentos causaram grave incomodo à saúde e inabilitação do serviço. Houve um empate de votos na pergunta “O réu Virginio estava louco no momento em que cometeu o crime?”, sendo seis votos “Sim” e seis votos “Não”. Também empate no quesito: “O réu cometeu o crime impelido por um motivo reprovado?”. Ao último quesito, referente as circunstâncias atenuantes em favor do réu, o júri respondeu o seguinte:

Ao 8º, sim, por nove votos: Existem circunstâncias atenuantes a favor do réu – a do §I do art.18: Não ter havido no delinquente pleno conhecimento do mal e direta intenção de o praticar(em transcrição livre)

Este é um caso com tantas nuances, que torna difícil elaborar uma conclusão, ou uma consideração final. É um processo que incomoda, seja pelo modo de tratamento de seus principais personagens, pessoas escravizadas, desprovidas de sobrenome, reconhecidas apenas pelas alcunhas de “escravo (a) de...”, ou seja por seu desfecho, no qual uma mulher, ferida gravemente por inúmeras facadas vê seu agressor inocentado, por estar embebido em uma “loucura de amor”.

Achados do Arquivo Documentação Institucional

Texto:  Giovanna Felini Calabria
Supervisão de Texto e Fotografia: Rodrigo Alves - MTB 42.583
Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Pesquisa:  Giovanna Felini Calabria

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