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Atas preservadas na Câmara Municipal de Piracicaba revelam a inquietação causada pelo repentino sumiço do ocupante do cargo
Gabriel Venâncio, à esquerda, fez a pesquisa sob orientação de Giovanna Calabria (à direita)
Crédito: Guilherme Leite - MTB 21.401Vila Nova da Constituição, 1831. Um alvoroço tomou o dia 23 de outubro daquele ano. Uma reunião extraordinária foi convocada na Câmara Municipal de Piracicaba para que os vereadores discutissem o acontecido matutino: naquela manhã, por volta das 9 horas, o procurador deixou a comunidade sem destino e sem avisar ninguém, anunciou o então presidente da Casa, José Caetano Rosa.
Material preservado pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Casa de Leis revelam atas daquele fatídico dia e fazem parte do Achados do Arquivo, publicado semanalmente no site oficial do Legislativo piracicabano. Os documentos integram o Livro de Atas 4, que compreende o período entre os anos 1831-1836, e que pode ser acessado pelo sistema Atom, disponível no site da Câmara Municipal de Piracicaba.
“Inicialmente, é importante ressaltar que o procurador, já naquele período, exercia cargo de grande importância para o meio político e administrativo”, explica Gabriel Tenório Venâncio, estagiário de História, que realizou a pesquisa sob a supervisão da chefe do setor, Giovanna Calabria. Ele lembra que, segundo as atas encontradas no arquivo da Casa, “procurador saiu da então Vila levando escravizados e o que possuía”.
Perplexo com o ocorrido, o presidente da Câmara faz uma defesa sobre o procurador, conforme aponta trecho do material, transcrito por Gabriel:
“[...] eu não quero com isto dizer que ele seja capaz de ter uma falta tão grande com esta Câmara, e não é de suspeitar; porém cumpro com o meu dever em reunir e compartilhar o que ocorre a este respeito, e porque os homens são sujeitos a tudo.” (em transcrição livre)
No dia seguinte, 24 de outubro de 1831, os vereadores novamente se reuniram em sessão extraordinária. O sentimento de curiosidade sobre o ocorrido perpetuava, eis que então, resolvem nomear um novo procurador – Felipe de Cerqueira Leite – e atribuem sua primeira tarefa: “e que seguisse o antigo procurador até onde o descobrisse”, aponta o documento.
Cerqueira Leite cumpriu a tarefa.
“O procurador que tinha sido nomeado por seu oferecimento, participou que seguindo ao ex procurador Damaceno, conforme a deliberação da Câmara, [...] o alcançou na Vila de Itu, e ali convencionou se para ele voltar a dar suas contas o que prometeu logo fazer [...]” [em transcrição livre]
Mais tarde, em 8 de novembro, a Câmara torna a discutir sobre o ex-procurador, dessa vez na intenção de colocar um ponto final sobre o ocorrido:
“Primeiro que revendo com madura refeição o seu libelo acusatório que não só pode chamar de outra maneira, o celebérrimo requerimento dizendo que a Câmara não lhe deferiu coisa alguma quando requereu sua demissão, o que falta verdade, tanto deferi-lhe que até mandou pedir para esperar alguns dias por não se poder legalizar nessa ocasião as contas [..]”[em transcrição livre]
Aparentemente, o procurador Damaceno requereu mais tempo para explicar tanto a ausência como sua falta no que dizia respeito aos tramites de sua demissão. E, ainda de acordo com os documentos preservados na Câmara, ficou esclarecido que o sumiço repentino do procurador foi ocasionado porque ele devia dinheiro:
“[...] o senhor Presidente denuncia que ele (o ex-procurador) safou-se levando seus escravos e trastes, e que o desertor havia fugido para escapar de prestar contas com Francisco Florêncio do Amaral, e dar-lhe o dinheiro que há treze anos tem em seu poder como seu tutor, e por isso reuniu-se a Câmara e deu-se as providencias que esteve ao seu alcance, e se não foi legal a precatória talvez por falta de alguma explicação no requerimento: Nota se mais em dizer que ele deixou trastes, dinheiro e um escravo, e com firme resolução de retornar no dia vinte e nove do mês de outubro como se ele desse parte ao menos ao senhor presidente de sua saída por caminho esquisito, e de sua firme resolução que não cumpriu, e como se fosse da atribuição da Câmara saber de seus negócios particulares e se deixou ou não dinheiro e trastes, ela só cuidou no que lhe pertencia, [...]” (transcrito para o português atual)
A sessão foi suspensa após o Damaceno retornar e pagar os catorze mil reis que acumulou em sua função como procurador.
ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" se pauta na publicação de parte do acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo. Ela foi criada pelo setor de Documentação, em parceria com o Departamento de Comunicação Social, e conta com publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo da Câmara Municipal de Piracicaba.
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