EM PIRACICABA (SP) 31 DE MARÇO DE 2023

Achados: o curioso caso do expurgo de 'Padre José, O Terrível'

Ofícios de meados do Século XIX, preservados na Câmara, mostram a conflituosa relação da comunidade com liderança religiosa




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Tal qual Ivan, o príncipe russo do Século XVI (foto), Padre José recebeu o epíteto de 'O Terrível' pelo Setor de Gestão de Documentos e Arquivos. FOTO: imagem do filme de Serguei Eisenstein (1944)




Parece trama de folhetim – ou seria roteiro de filme épico? Mas a história é a seguinte: o padre de uma pacata cidade à beira de um rio, nos inexplorados vales do Médio Tietê, é enxotado pela comunidade por não prestar, a contento, os serviços como religioso.

Maldoso como um príncipe da Rússia imperial do Século XVI – Ivan, O Terrível, talvez?, personagem retratado no cinema –, Padre José Gomes Pereira da Silva fez de tudo para ser odiado na Vila da Constituição. E os ofícios da época anunciam: ele conseguiu. 

Em mais um Achados do Arquivo, o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba traz uma sequência de ofícios em que são relatadas as peripécias do Padre José “O Terrível” – o epíteto é uma escolha do estagiário de História, Gabriel Tenório Venâncio, responsável pela pesquisa dos documentos.

Um destes documentos é a representação feita ao presidente da Província e que foi redigida pelos vereadores Salvador de Ramos Correa, Augusto Cesar de Oliveira, Afonso Agostinho Gentil de Andrade e José Wenceslau de Almeida Cunha. Em longas páginas documentais, os vereadores explanam um enumerado de acontecimentos envolvendo Padre José:

“A seis anos, mais ou menos, que o povo da paroquia desta cidade geme sob a pressão do mais profundo desgosto pela falta de cumprimento de deveres do referido ex-vigário Padre José Gomes Pereira da Silva. Esta falta ultimamente tornou-se gravíssima [...]” (em transcrição livre para o português atual)

Padre José estava causando conflitos entre os religiosos, negando-se a prestar serviços como padre à população, faltando às missas, insultando quem quisesse com ele se confessar e até mesmo ter agredido verbalmente a filha de Joaquim Teixeira de Barros, que o procurou para se confessar antes de se casar. “Foi aí que o caldo engrossou, visto que Teixeira de Barros é citado como um respeitável pai de família, o que poderia significar à época que o dito possuía influência na cidade”, destaca Gabriel.

Ele destaca, ainda com base nos ofícios encontrados na Câmara, que o bispo Dom Antônio Joaquim de Melo resolveu tomar providências e encaminhou à Vila da Constituição um sacerdote para abrir inquérito acerca do “padre-problema” e aproximadamente 16 famílias representaram contra o sacerdote. Sobrenomes de poder à época são citados:

“[...] o comendador Tenente Coronel Capitão Emídio Justino de Almeida Lara, Tenente Afonso Agostinho Gentil de Andrade, José Pinto de Almeida, Luís Manoel Martins Guimarães, Augusto Cesar de Oliveira, professor de latim Bento Barreto do Amaral Gurgel, [...]” (em transcrição livre para o português atual)

“As provas eram tão incontestáveis, visto que vinham acompanhadas de sobrenomes de peso, que o padre José foi suspenso”, acrescenta Gabriel. Foi então que o bispo tomou as iniciativas para que o padre fosse suspenso e substituído das atribuições religiosas. Mas... como em toda trama de folhetim ou filme épico, surge o imponderável: o bispo morre!

Dom Antônio era uma das esperanças da comunidade em 1861 e sem ele o padre José poderia voltar a causar conflitos entre os fiéis, e assim ele fez:

“Correndo no dia 19 deste a infausta notícia, da sentidíssima e sempre lamentável morte do exímio bispo, alguns foguetes nessa noite subiram ao ar atribuídos todos ao Padre José Gomes Pereira da Silva que assim aplaudia tão feliz, e tão fausto acontecimento!!!! Não há exímio senhor, nesta cidade, pobre ou rico, pequeno ou grande, branco ou preto, que não relate esta tristíssima história, e a vista disto poderá este padre ainda exercer funções respeitáveis?” (em transcrição livre para o português atual)

Sim, é exatamente isso o que está escrito: Padre José, O Terrível soltou rojões para comemorar o passamento do bispo Dom Antonio!

“Esta atitude foi o ato final para que terminasse de vez o seu péssimo período na cidade”, diz Gabriel, ao lembrar que os vereadores encaminharam um novo documento ao presidente da Província esperando que tomasse providencias a respeito dos terríveis acontecimentos:

“Assim pois ela pede a vossa excelência, que aja de intervir de maneira, que não se realize a fatal reintegração do padre José Gomes Pereira da Silva, o que se tivesse lugar seria uma verdadeira calamidade. [...] Paço da Câmara Municipal da Cidade da Constituição em sessão extraordinária de 24 de fevereiro de 1861. [...]” (em transcrição livre para o português atual)

Com a pressão da Câmara, da comunidade e das famílias mais abastadas da Vila da Constituição, Padre José foi finalmente expurgado da cidade:

“A Câmara Municipal da cidade da Constituição, em nome da religião do estado, em homenagem à sagrada memória do exímio Bispo Diocesano Dom Antônio Joaquim de Melo, hoje falecido, vem representar a Vossa Excelência (referindo-se ao presidente da Província), implorando a intervenção benéfica do governo para com o exímio vigário capitular, quando estiver nomeado, afim que de maneira alguma seja reintegrado no cargo de vigário desta Paróquia o ex vigário encomendado José Gomes Pereira da Silva, suspenso de suas ordens pelo exímio Bispo Diocesano, que Deus o tenha em sua Santa Guarda.” (em transcrição livre para o português atual)

E assim terminou o trágico período paroquial de Padre José, O Terrível na então pacata Vila da Constituição.

ACHADOS DO ARQUIVO - A série "Achados do Arquivo" se pauta na publicação de parte do acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo. Ela foi criada pelo setor de Documentação, em parceria com o Departamento de Comunicação Social, e conta com publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo da Câmara Municipal de Piracicaba.

Achados do Arquivo Documentação

Texto:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Supervisão:  Rebeca Paroli Makhoul - MTB 25.992

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