
Há 30 anos, sessão itinerante da Câmara ecoou "espírito do tempo"
Nos primeiros anos da Guerra Fria, em 1950, Câmara de Piracicaba rejeitou apelo contra arma nuclear sob justificativas anticomunistas
Lançadas pelos EUA, bombas atômicas foram ameaças constantes durante a Guerra Fria
As bombas nucleares lançadas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945, escancararam a frágil aliança que as Forças Aliadas haviam formado para conter a Alemanha nazista de Adolf Hitler. Em lados opostos, União Soviética e Estados Unidos passariam as próximas décadas sob as tensões da Guerra Fria, o conflito ideológico que determinou as relações geopolíticas ao longo do Século 20.
Na pacata Piracicaba dos anos 1950, a discussão de uma indicação na Câmara com o intuito de assinar um documento internacional contra as armas nucelares sintetizou a geopolítica da época. O tema é destaque da série Achados do Arquivo desta semana.
Elos frágeis – Harry Truman – que assumira a Presidência dos EUA no fim da Segunda Guerra Mundial – estabeleceu uma política linha-dura contra os soviéticos. Não apenas foi o responsável pelas ogivas descarregadas no Japão, como, dois anos mais tarde, em 1947, proferiu discurso em que lançava as bases da doutrina que levaria seu nome e cujo objetivo era conter o avanço dos comunistas nos chamados “elos frágeis do sistema capitalista”.
A ponta de lança da Doutrina Truman foi o Plano Marshall, voltado à reconstrução da Europa devastada pela guerra. Mas consolidar um bloco capitalista no Velho Mundo também serviu como vitrine para outros países, sobretudo no Brasil, que, então sob o governo de Eurico Gaspar Dutra, tinha uma política externa alinhada aos EUA, havia rompido as relações com a União Soviética e perseguia os comunistas no País.
É neste contexto que na reunião ordinária de 1º de junho de 1950, o vereador Antônio Aggio apresentou a indicação 39, com o assunto “Pedido de interdição do uso da bomba atômica”. Um dos trechos da propositura dizia o seguinte:
“A Câmara Municipal de Piracicaba resolve dirigir-se à Organização das Nações Unidas (ONU) comunicando o seu ardoroso desejo de apoio ao humanitário apelo, junto à Cruz Vermelha de São Paulo, por conseguinte a Cruz Vermelha Internacional, no sentido de ser interditada a arma atômica, o terrível engenho de destruição da humanidade, considerando bárbaro e criminoso de guerra o governo que dela primeiro fizer uso”.
O processo referente à indicação, além do texto da proposta, trazia outros documentos, como o panfleto “Cruzada Humanitária pela Proibição das Armas Atômicas”, que estampava os dizeres do Apelo de Estocolmo:
“Exigimos a proibição absoluta da arma atômica, arma de terror e de extermínio em massa de populações. Exigimos o estabelecimento de um rigoroso controle internacional para assegurar a aplicação dessa medida de interdição. Consideramos que o governo que primeiro utilizar a arma atômica, não importa contra que país, cometerá um crime contra a humanidade e será tratado como criminoso de guerra. Pedimos a todos os homens e mulheres de boa vontade do mundo inteiro que assinem este apelo”.
Trazia ainda ofício endereçado ao presidente da Câmara, oriundo da Cruzada, conclamando a Casa a colher assinaturas em prol do Apelo de Estocolmo, que contestava a política armamentícia das potências que se degladiavam em uma corrida armamentíscia.
Um documento humanista, contra armas nucleares, não tinha nada que pudesse “dar errado”. Mas... havia um "problema": o Apelo de Estocolmo foi de iniciativa Frédéric Joliot-Curie, que, embora tenha sido laureado com o Nobel de Química em 1935, era militante comunista. E não só isso: foi amplamente divulgado no Brasil por outras figuras alinhadas a essa ideologia, com destaque ao escritor Jorge Amado, então deputado federal pelo PCB.
Tramitação – O andamento da propositura se deu com pareceres divergentes entre os integrantes da Comissão de Justiça e Redação e debates em plenário que giraram em torno da conveniência de se aprovar uma proposta “que era de iniciativa de elementos comunistas”.
Em 27 de junho, dois (dos três) integrantes da comissão – vereadores Benedito Glicério Teixeira e Haldumont Campos Ferraz – assinaram parecer favorável, afirmando que a indicação “merece aprovação deste plenário”. Portanto, passado o recesso de julho, na volta dos trabalhos legislativos, na sessão de 3 de agosto, o autor da proposta solicitou “urgência para votação”.
Transcorrido o mês de agosto, sem a propositura ter ido à votação, o autor, vereador Antônio Aggio, desejoso de trâmite mais ágil, em 31 de agosto fez um novo pedido para que a indicação fosse à Ordem do Dia com urgência.
Essa nova solicitação fez com que, cinco dias depois, em 5 de setembro, o terceiro integrante da Comissão de Justiça e Redação, vereador Antônio Lázaro Coelho Mendes, se manifestasse, emitindo parecer em separado e em sentido contrário dos outros dois membros. Lázaro opinou que o assunto tinha “dado ensejo a inúmeras controvérsias” e que a Câmara deveria “conservar-se à margem da questão”. Ou seja, que a Casa não deveria aprovar a proposta, silenciando a respeito do tema.
Na sessão seguinte, em 14 de setembro, é decidido que a indicação vá à votação na reunião seguinte. Assim, em 25 de setembro, a propositura foi posta em discussão e votação. O primeiro vereador a discutir foi Américo Freitas e Silva, que se pronunciou “a favor do arquivamento, por entender que o movimento existente para interdição do uso da bomba atômica era de iniciativa de elementos comunistas, sendo mais aconselhável, portanto, que ficasse a Câmara à margem de assunto”.
O autor da proposta, vereador Antônio Aggio, foi ágil na resposta, ao se manifestar logo na sequência, afirmando que “não deveriam ser rejeitados os atos bons dos comunistas, como seria o caso em foco, pois, tempos atrás, embora não de iniciativa de comunistas, as nações haviam determinado a abolição do gás e outras armas mortíferas”.
Embora tenha se declarado “inteiramente anticomunista” – como, aliás, já havia afirmado por vezes em praça pública –, Aggio argumentou que trazia consigo sentimentos humanitários tais que o haviam levado a apresentar a indicação, “elaborada com a mais justa e reta das intenções”.
O terceiro e último vereador a discutir foi Domingos José Aldrovandi, que, contrário à propositura, asseverou que “a manifestação da Câmara em nada influiria e que, pessoalmente, era de todo contrário à guerra com armas de qualquer natureza, porque todas elas matam e destroem”.
Encerrada a discussão, a proposta foi rejeitada e arquivada.
Numa época em que ainda se temia o estampido das bombas atômicas, o debate sobre a indicação do vereador Antônio Aggio trouxe à cidade os ventos ideológicos que sopravam do Hemisfério Norte e os ecos da Doutrina Truman.
Achados do Arquivo – A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo e de Documentação, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba. Ela traz publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo. (Texto escrito com a colaboração de Bruno Didoné de Oliveira)
Há 30 anos, sessão itinerante da Câmara ecoou "espírito do tempo"
Fotos de ações legislativas revelam mudanças urbanas de Piracicaba
Procissão e palavrões: um escândalo na Sexta-feira Santa de 1847
Tribuna Popular: há 30 anos, a voz do povo no plenário da Câmara
Virginio e Leocadia: loucura de amor ou injustiça no Século 19?
Entre a empatia, a realidade e a ficção: a história de Tércio Zem
Das pandemias e dos tempos: memórias de 1918 e as marcas de 2020
Câmara teve primeira vereadora somente 128 anos após sua instalação
Rainha esquecida do samba: o ‘não achado’ de Madrinha Eunice
Um tiro no Bairro Alto: sangue e ciúmes na Piracicaba do Século 19
Da vacina ao sepultamento: a atuação da Câmara na saúde pública
Livro revela debates sobre sepultamentos na igreja e limpeza da cadeia
Achados do Arquivo: há 20 anos, Câmara utilizava o painel eletrônico
Ecos de um adeus: o funeral de Winston Churchill em jornais locais
Quando Piracicaba saudou Lyndon Johnson pela vitória nos EUA em 1964