EM PIRACICABA (SP) 10 DE NOVEMBRO DE 2023

Rumores de uma revolta de escravizados na Vila da Constituição

Documento preservado na Câmara ilustra tensões entre opressores e oprimidos em meados do Século 19




Toque na imagem para aumentar

Reprodução da Batalha de San Domingo, durante a Revolução Haitiana: ofício da Câmara da Vila da Constituição ilustra conflito entre escravistas e escravizados em meados do Século 19




Revoltas, descontentamentos, insurreições e dissidências políticas não eram raras no Brasil do Século 19. Tais acontecimentos, certamente, não deixaram ilesa a pacata Vila da Constituição, a Piracicaba daquele tempo. É sobre uma destas ocorrências, relacionada a rumores de uma insurreição de escravizados, que aparece em um dos livros de ofícios preservados pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba e nesta semana é destaque da série Achados do Arquivo.

No ano de 1848, mais especificamente em 30 de julho, um ofício dos membros da Câmara de Vila da Constituição enviado ao Presidente da Província (na época, Domiciano Leite Ribeiro), alguns trechos são em tom de alarme e desastre iminente por parte dos membros da Câmara, que começam relatando as informações obtidas sobre rumores de uma revolta de escravizados, informações que foram recebidas através de um tal “Pedro”, que fora preso, denunciado por um homem branco:

“A Câmara Municipal desta Vila da Constituição, sempre solícita pela manutenção da ordem e do sossego público, tem de fazer chegar à respeitável presença de Vossa Excelência a seguinte consideração: Há poucos dias tem-se manifestado nesta Vila um ensaio de insurreição na classe africana, que segundo declaram alguns capturados e interrogados, estava para acontecer no dia 7 de setembro, sendo notável que o tal recurso se tramava com demasiada audácia, pelo menos na expressão de um Pedro preso, que pela Subdelegacia da Vila foi primeiramente capturado e interrogado por denuncia de um sujeito branco, que goza tanto de conceito quanto verdade.” (em transcrição livre).

Dadas as circunstâncias de considerável preocupação, os membros da Câmara, de imediato, informam ao Presidente que as autoridades já estavam estudando os melhores planos de contenção, “caso o pior realmente fosse acontecer”. Segundo outros capturados, estava programado a correr sangue:

“Em consideração a isto, têm as autoridades da Vila lançado todas as medidas possíveis para prevenir e averiguar o tal ensaio de hostilidade, e tal que o primeiro interrogado e alguns outros que se têm capturado têm declarado que o plano era correr sangue. Esta Câmara entende ser urgente rogar-se à pretensão de Vossa Excelência para melhor incluir toda a prevenção que demanda a ocasião, já pelo perigo, já pelo alarme em que se acha a população desta vila.” (em transcrição livre).

Como consequência de afirmações tão alarmantes, os membros da Câmara não tardaram a averiguar a situação bélica da Guarda Nacional de Vila da Constituição e é nos relatos a respeito disso que ficamos sabendo sobre a situação precária do armamento, que se achava em falta e as poucas que existiam se encontravam em estado de ruína, impossibilitando qualquer medida reativa a possíveis agressões.

Tomados por sentimento de fatalismo, bem como pela preocupação das povoações vizinhas, eles não hesitam em rogar, esperançosamente, por algum tipo de ajuda do Presidente, ansiando escapar do terrível desastre:

“Cumpre informar a Vossa Excelência que a Guarda Nacional não tem armamento capaz de reagir a qualquer agressão, pois apenas conta-se com umas trinta armas, e mesmo essas quase todas arruinadas. Em tais circunstâncias, esta Câmara, bastante persuadida do zelo que Vossa Excelência tem manifestado em prol da ordem e sossego público, espera esta Câmara em comum sentimento com os habitantes deste Município, e mesmo dos circunvizinhos que estão no risco de serem ameaçados ou agredidos do mesmo mal eminente, que pela coadjuvação do governo e ilustrada administração de Vossa Excelência, poder-se-á escapar de tão horrível e consequente cumprimento.” (em transcrição livre).

Pelo temor a respeito da escassa situação defensiva da Vila da Constituição, restou recorrer a alguma solução externa, a qual foi encontrada na Vila de Araraquara. Os membros da Câmara passam a informar ao Presidente que, naquela Vila, achava-se um destacamento de “Permanentes”, bem como utilizam o argumento de que Araraquara se encontrava tranquila, para então sugerir o crucial deslocamento até a Vila da Constituição, no intuito de defendê-la. Para ficarem ainda mais inteirados da situação como um todo, os membros da Câmara relatam que fizeram até mesmo um orçamento dos escravizados no perímetro da Vila, ultrapassando o número de 1600 destes que eram “hábeis para serviço”, o que abrangia cerca de 50 casas de engenho:

“Conta a esta Câmara que na Vila de Araraquara acha-se um destacamento de Permanentes, e que a mesma Vila está inteiramente tranquila, bem como é certo que aquela Vila é quase toda povoada de fazendeiros criadores de gado, e não de engenheiros; por isso que, nas atuais circunstâncias, pode ser que à Vossa Excelência pareça mais crucial remover para esta vila o tal Destacamento existente em Araraquara. Esta Câmara também faz ver à Vossa Excelência que, tendo-se orçado os escravos que existem no círculo desta Vila, somente dentro de três léguas excede a mil e seiscentos negros hábeis para serviço, sendo que este número apenas abrange umas cinquenta casas de engenho.” (em transcrição livre).

Todavia, os membros entendem que, apesar da urgente necessidade de se guarnecer as defesas da Vila, seria dificultoso um fornecimento bélico de maior expressão, e por conta disso terminam apenas requisitando um número de 50 praças para serem temporariamente guarnecidos em Vila da Constituição, sendo que as despesas seriam providas pelo cofre provincial:

“É, pois, evidente a necessidade de proteção por força externa, que suplica esta Câmara em nome do povo, e que espera merecer a premente atenção de Vossa Excelência. Considerando, porém, esta Câmara a dificuldade de fornecimento de maior vulto, somente requisita e pede à Vossa Excelência a autorização para aqui serem engajados 50 praças para serem temporariamente empregados na guarnição e diligências preventivas, ou convencionais que as circunstâncias demandarem, cujo engajamento e direção pode ser incumbida a quem for de maior confiança de Vossa Excelência, sendo indispensável que as despesas sejam fornecidas pelo cofre provincial.” (em transcrição livre).

Depois do que deste ofício, não houve mais registros de uma suposta rebelião de escravizados em Vila da Constituição que tenha chegado às vias de fato, o que leva a conjecturar que o plano ficou no campo dos rumores. Porém, mesmo que não tenha acontecido, os documentos ilustram a situação social e econômica de Vila da Constituição, representada pelo estado em que se encontrava os armamentos naquele período, mostrando-nos que nem de longe havia preparo adequado para que Vila da Constituição pudesse ser defendida em eventuais situações de conflito.

Este ofício é singular ao revelar o contexto histórico da Piracicaba do Século 19 e demonstrar que o período escravagista foi, também, de permanente tensões entre opressores e oprimidos. (Texto de Brenno Rodrigo Monteiro, estagiário de História do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo)

Achados do Arquivo – A série "Achados do Arquivo" é uma parceria entre o Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, ligado ao Departamento Administrativo e de Documentação, e o Departamento de Comunicação Social da Câmara Municipal de Piracicaba. Ela traz publicações semanais no site da Câmara, às sextas-feiras, como forma de tornar acessível ao público as informações do acervo do Legislativo.

Achados do Arquivo Documentação

Supervisão:  Rebeca Paroli Makhoul - MTB 25.992
Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337


Anexos:
ofício 30.07.1848.pdf


Notícias relacionadas